quarta-feira, 14 de abril de 2010

CONSTRANGIMENTOS.


Ouvi certa vez alguém dizendo que: "neste mundo tem gente pra tudo e ainda sobra gente pra bordar tamancos". O "causo" que lhes vou contar hoje, tem tudo a ver com este dito abençoado.

A Mariana Silveira, por motivos que seriam longos de explicar, chegara a vida adulta sem definir, entre outras coisas, a profissão que gostaria de ter. Tudo o que que lhe sugeriam lhe parecia constrangedor, segundo lá os seus critérios. Ainda na faculdade, onde estudara economia por exigência da mãe, pois achava este estudo incrivelmente constrangedor, uma colega chamou-a para entrar num grupo de teatro que ia montar "A Tempestade" de Shakespeare, dirigida por um rapaz tido pela mídia como ótimo. O elenco também não era ruim e o papel do Próspero, seria feito por um ator de talento. Enfim, era um acontecimento que, para uma iniciante, estava muito bom. A Mariana foi à primeira leitura e no final o diretor lhe disse que ela faria o papel da Miranda lindamente.

Quando já estavam saindo do ensaio, resolveram, ela e a colega, tomar um chope e comer alguma coisa. Durante o jantar a Mariana se saiu com esta:

- Olha aqui, você me desculpe mas não vai dar para eu fazer a peça, não.

- Por que?

- É tudo muito constrangedor...

- Como assim?

- Pensei bem e cheguei a conclusão de que o palco não é para mim. Eu ia ficar muito constrangida de estar em cena, dizendo aquelas coisas em voz alta. Não gosto nem de pensar no grau de constrangimento por que eu passaria fazendo isso.

Para quem não sabe, "A Tempestade" é um dos mais importantes textos de Shakespeare e consta que foi a última peça que ele escreveu, portanto na maturidade, com o domínio total de sua prodigiosa "carpintaria". Além do mais, o papel da Miranda, é adorável e qualquer jovem atriz o cobiça. Só que a Mariana não desejava, por pudor, ser uma atriz e refugou a personagem usando a expressão que marcaria toda a sua vida: "É muito constrangedor".

Com relação ao amor a ladainha era a mesma: o Marcelo, um jovem muito bonito, atlético, inteligente, bem educado, elegante, de boa família, com a carreira definida pela diplomacia, com todos os atributos físicos que costumam agradar as mulheres e similares, se me faço entender, um dia, depois de um ano de namoro, lhe propôs casamento. Ela foi direta e usou de toda a sua honestidade:

- Tente entender, Marcelo. Eu te amo, nós nos damos bem, gosto da sua família e acho você tudo de bom. Porem não posso fazer coisas que contrariem os meus princípios. Sob hipótese alguma eu poderia me casar.

- Por que?

- Não consigo nem pensar no constrangimento que sentiria ao entrar numa igreja vestida de noiva, levando flores nas mãos, usando grinalda e véu. Acho que não pode haver nada pior. Lamento profundamente, mas está acima das minhas forças.

- Você está se escondendo nesta explicação porque, na verdade, não quer se casar comigo.

- Eu adoraria ligar a minha vida a você, ser a sua mulher, mas realmente não posso. No dia da minha primeira comunhão eu fugi de casa e só apareci à noite. Minha mãe quase morreu de vergonha. Ainda bem que não se tem noticia de ninguém que tenha morrido disso.

- E se o casamento for somente civil?

- Não é tão constrangedor quanto o religioso, mas também é terrível, fica todo mundo sabendo, comentando e perguntando sobre a lua de mel. Olha só como eu fico toda arrepiada só de pensar neste horror.

- É por isso então que você nunca, em matéria de sexo, demonstrou interesse?

- Eu adoraria fazer sexo com você. Só de te olhar eu fico alucinada, mas acho que poderia ser tudo muito sofrido por causa do constrangimento...

- Mas todo mundo faz...

- Não me importo com os outros. A coisa mais constrangedora que existe são duas pessoas fazendo sexo.

- Você é tão linda, Mariana.

- Por favor, vamos mudar de assunto.

- Você está corada! É vergonha?

- É. Só de pensar no constrangimento de entrar com você pela primeira vez num quarto de hotel, fico aterrorizada. Não é o sexo que me assusta, é o constrangimento que ele pode me causar.

- Então só posso fazer uma coisa: sair da tua vida.

- Obrigada Marcelo, pela compreensão. Eu realmente já andava morrendo de constrangimento em saber que as pessoas notavam que eu te amo. Essas coisa são muito intimas. Devem ser vividas em segredo. Um segredo que devemos esconder de nós mesmos. Adeus Marcelo. Te amo.
- Você está completamente louca. Este negócio de se constranger com tudo, não pode ser normal. Procure um tratamento.

Separaram-se e nunca mais voltaram a se encontrar nem socialmente. Para a Mariana foi, por um lado um alivio, por outro um grande sofrimento, porque ela realmente amava o Marcelo a seu modo. Quando contou à mãe que rompera com o Marcelo e disse o motivo, a irônica senhora perguntou:

- Seria muito constrangedor você ir "amolar o boi"? - e saiu a passear e fazer compras.
Havia entretanto nos seus lábios um sorriso amargo, triste, sofrido.
Sentindo-se solitária e infeliz, a Mariana se jogou na cama e chorou muito. Adormeceu mas quando acordou vestiu-se e saiu sozinha. No dia seguinte, o telefone tocou e era uma amiga convidando para irem ao teatro ver a estreia do show de uma cantora nova que era o grande acontecimento da temporada.

- Ah, Maria Elisa, eu estou doida para ver, mas tenho medo que seja um acontecimento muito constrangedor. Outro dia eu fui ver a ultima apresentação da Maria Bethania e tive de me retirar no meio. Nunca me senti tão constrangida. Eu estava na décima fila, mas não pude evitar. Saí de fininho.

- Mas você não gostou do espetáculo ou dela?

- Olha, outra pessoa poderia até gostar muito de ambos. Eu porem fiquei constrangida e tive de sair. Fui a um restaurante perto do teatro. Só que não jantei, porque tinha muita gente lá e você sabe que isso me constrange demais.

- Mariana meu bem, você está cada dia pior com esta história de ficar constrangida com tudo. Naquele show do Ney Matogrosso que fomos juntas, foi só ele botar o pé em cena que você se levantou e saiu correndo. Ele do palco viu... Eu fiquei com cara de taxo!

- Eu sei que foi horrível, mas não consegui evitar. Antes que ele começasse a fazer aquelas coisas, eu achei melhor fugir.

- Que coisas?

- Aqueles gestos...

- Então poderíamos sair hoje para tomar um chope e conversar com os amigos.

- Isso eu adoro, mas é preciso saber quem vai estar lá. Se aparecer gente muito constrangedora, estou fora.

- Vamos chamar a Martinha, o Walter...

- Pode parar por aí. Não vou.

- Mas eles são pessoas tão discretas, inteligentes, cultas, bem educadas...

- Não sei explicar. Toda vez que eles aparecem, fico num constrangimento de enlouquecer. No meu último aniversário tive de me retirar da festa, porque foi tamanho o constrangimento por causa deles, que não suportei.

- Mas o que eles fizeram para causar essa reação?

- Imagina que ela, de repente se retirou de um grupinho que estava reunido na varanda e foi ao toilette. Quando retornou tinha a expressão de quem fizera xixi. Ora, isso é insustentável!

- E como é esta expressão?

- Não sei explicar. Quando fui ao casamento da Lucinha, notei que o Carlos, o noivo, saiu do altar enquanto a noiva não chegava e foi ao toilette na sacristia. Tive mais uma vez de me retirar diante de uma cena destas.

- E como é que você faz quando tem vontade de fazer xixi? Faz ou sai correndo?

- Estas questões fisiológicas para mim sempre foram causa de sofrimento. Eu tenho de estar sozinha em casa e assim mesmo finjo que não estou prestando atenção no ato. De qualquer maneira é um tormento.

- É uma pena que você esteja assim... Bem, então tchau - e desligou para sempre.

O problema da Mariana é que ela todas as noites, às escondidas, lá pelas três horas, saia de casa vestida de puta e ia para a rua pintar e bordar na mais completa gandaia. Trepava com tudo que era homem que aparecesse, participava de surubas homéricas, bebia todas, cheirava todas, fumava maconha, já tinha sido varias vezes presa por comportamento sexual impróprio em via pública, por desacato, e até por estar sempre munida de um canivete com o qual costumava fazer abortos nas putas de suas relações. Agora creiam: quando voltava para casa, tomava um banho frio e durante este banho, ela esquecia de tudo o que fizera. Algum mecanismo defensivo se ativava nela e apagava de sua memória tudo sobre esta segunda personalidade.

Às vezes ela via em seu corpo sinais da vida depravada que levava à noite mas, honestamente, não sabia como explicar aquilo.

Apenas a sua mãe, que um dia, há muitos anos, a seguira nestas andanças noturnas sabia de tudo, mas sem ter como resolver a questão, com a impotência que certas coisas nos causam, deixava pra lá.

Esta situação perdurou por longos anos, até que um dia o seu lado puta sobrepujou a constrangida e ela ficou a mulher mais desmoralizada da zona sul. Quando aparecia em algum lugar, fosse onde fosse, todo mundo ficava seriamente constrangido. Mas só então a Mariana começou a ser feliz. Nem sabia mais o que era constrangimento.



CLÁUDIO GONZAGA.

Um comentário:

  1. Finalmente..puta! Adorei! Quantas Marianas existem sob diversos disfarces. Chega a ser constrangedor! hehhee
    Um abraço
    Christina Thedim

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