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SE UM DIA, AO PRESSENTIR O TERMO DA VIDA, EU COMETER A INFÂMIA DE ESCREVER A CRÔNICA DA MINHA FAMÍLIA CONSANGUINEA (há uma outra substituta, bem escolhida), NÃO PODEREI DEIXAR DE LADO O FATO QUE LHES VOU NARRAR DE MODO BREVE E SUPERFICIAL AGORA. COMO SEMPRE ACONTECE NOS RELATOS DE MEMÓRIAS, VAMOS INICIAR COM DOIS DEDOS DE LITERATURA ORDINÁRIA E DESLAMBIDA, PARA DAR ALGUMA COR LOCAL À COISA.
UM DIA, SENDO BELA E AZUL A MANHÃ, JÁ BANHADA EM BASTANTE LUZ TRANSLÚCIDA, INEBRIANTE E TOLA, BATEU À PORTA DE MINHA CASA DE ADOLESCENTE, UMA SENHORA POLONESA A PEDIR AJUDA, POIS NÃO TINHA MAIS ONDE MORAR, NEM O QUE COMER. TINHA SOMENTE FILHOS. FILHOS PEQUENOS E PRECISAVA ARRANJAR QUEM FICASSE COM ELES ATÉ A VIDA SE APRESENTAR MENOS DURA E CRUEL. ERA MAIS UM TEMPO DE DESESPERO PARA AQUELA MULHER QUE PASSARA, QUANDO SOLTEIRA NA POLONIA, OS HORRORES DA SEGUNDA GRANDE GUERRA. CHAMAVA-SE TEKLA E VIERA DEPOIS DE VIÚVA, NO INICIO DOS ANOS SESSENTA, VIVER NO BRASIL QUE, COITADO, ESTAVA PRESTES A VIVER O PIOR MOMENTO DE SUA HISTÓRIA A PARTIR DE 1964, ANO EM QUE O EXÉRCITO BRASILEIRO VIOLOU TODOS OS DIREITOS CIVIS E NUM GOLPE DE ESTADO QUE INTERROMPERIA O PROCESSO DEMOCRÁTICO E MERGULHARIA A NAÇÃO EM TREVAS POR DUAS DÉCADAS,. SE INSTALOU NO PODER. A POBRE TEKLA, SEM PODER PREVER ESTA CIRCUNSTANCIA ATERRORIZANTE (e que entra neste relato como Pilatos no Credo) DEU UM JEITO DE SAIR DA POLONIA E VIR PARA O BRASIL, QUE LHE PARECEU, PELOS CARTÕES POSTAIS QUE VIU EM SUA TERRA, UM PARAÍSO. EMBARCOU NUM CARGUEIRO E VEIO COM OS FILHOS (quatro) TENTAR A VIDA NO RIO DE JANEIRO. NADA, ABSOLUTAMENTE NADA DEU CERTO PARA ESSA POBRE GENTE QUE MAL SABIA FALAR O PORTUGUÊS. O POUCO DINHEIRO QUE CONSEGUIRAM TRAZER ACABOU EM MESES E A FOME ENTROU EM CENA.
DE QUALQUER MODO E APESAR DE TUDO, ERA UM TEMPO EM QUE HAVIA NESTE PAIS ALGUM RESQUÍCIO DE DIGNIDADE NAS PESSOAS E NÃO ERA AINDA EXECRADO O ATO DE PRESTAR SOCORRO A QUEM PEDIA. A MINHA MÃE, MESMO SEM TER O MAIS DELICADO CORAÇÃO DO MUNDO, SE COMPADECEU DAQUELA MULHER E RECEBEU O SEU CAÇULA PARA CUIDAR. ERA BEM PEQUENO AINDA, CHAMAVA-SE ZIGMUND GRUSKOWSKY E OS SEUS CABELOS ERAM LOUROS E LISOS COMO OS DE UMA ESPIGA DE MILHO. TINHA QUATRO ANOS MAS JÁ SE FAZIA ENTENDER EM UM PORTUGUÊS ENGRAÇADO. A TEKLA AGIA DA FORMA MENOS ORTODOXA AO PEDIR ASILO PARA OS FILHOS: ELA BATIA À PORTA DE ALGUEM E CONTAVA A SUA HISTÓRIA DE MISÉRIA ÍNTIMA, ABANDONO E FOME. MUITA FOME. QUEM TIVESSE UM PINGO DE SOLIDARIEDADE, LHE ESTENDERIA A MÃO. ESTES POREM, NUNCA FORAM MUITOS, COMO SE SABE.
POR RAZÕES QUE NÃO VÊEM AO CASO, O ZIGMUND COMEÇOU A SER CHAMADO PELOS MEUS IRMÃOS E MÃE, DE "ZIGMUS". ELE DEVE TER ESTRANHADO ESTE NOVO NOME, MAS PRECISAVA COMER E NÃO SERIA UM DETALHE COMO ESTE QUE O IRIA PERTURBAR. UMA CRIANÇA COM FOME SABE MUITO BEM DE QUE LADO ESTA VINDO O CHEIRO DE UM BOLO DE CHOCOLATE ASSANDO NO FORNO. ALÉM DISSO, JUSTIÇA SE LHES FAÇAM: TODOS DA CASA PARECIAM TER GOSTADO DELE E O MENINO TALVEZ TENHA SIDO FELIZ. PARA A MINHA MÃE TAMBÉM A SITUAÇÃO SE RESOLVEU FAVORAVELMENTE, POIS COM AQUELE GESTO DE ACOLHIMENTO, ELA APARECERIA PUBLICAMENTE COMO IMENSAMENTE MAGNÂNIMA, SEU GRANDE OBJETIVO SEMPRE.
FOI PARA A FAMÍLIA TODA, PENSO, UMA EXPERIÊNCIA MUITO DIVERTIDA TER UM MENINO "ALEMÃOZINHO" EM CASA. PRINCIPALMENTE PORQUE ELE VINHA COM UMA HISTÓRIA DE TRISTEZAS, POBREZA E DESGRAÇAS. ÉRAMOS TODOS AINDA MUITO MOÇOS E É CONHECIDA A ATRAÇÃO QUE OS JOVENS SENTEM PELAS CATÁSTROFES EXISTENCIAIS DOS OUTROS.
AOS POUCOS FORAM APARECENDO OS IRMÃOS DO "ZIGMUS" LEVADOS PELA TEKLA. PODE-SE IMAGINAR COMO FOI DURO PARA A MÃE SEPARAR OS IRMÃOS QUANDO AINDA MUITO JOVENS POIS, NA INFÂNCIA, O AMOR ENTRE IRMÃOS É MUITO GRANDE, TALVEZ PORQUE PRECISEM JUNTOS SE DEFENDER DOS ADULTOS E DE SUAS CRUELDADES. MAIS TARDE, ESTE AMOR DESAPARECE COMPLETAMENTE POR JÁ NÃO SER MAIS NECESSÁRIO. É UMA TRISTEZA MUITO GRANDE PARA QUEM VIVE DO ESPÍRITO. A FAMÍLIA SE DESFAZ E NÃO SOBRA NADA.
OS FILHOS DE TEKLA ESTAVAM AINDA NA IDADE EM QUE O AMOR ENTRE ELES ERA IMENSO. DEVE TER SIDO PARA AQUELAS CRIANÇAS UM TORMENTO A SEPARAÇÃO.
ESTAVAM SEMPRE FAMINTOS QUANDO APARECIAM E ERA UMA LINDEZA VÊ-LOS COMENDO COM AQUELE APETITE VORAZ. É CURIOSO COMO, MESMO ENTRE AS PIORES PESSOAS, O ATO DE VER ALGUEM MATANDO A FOME É APRECIADO COM PRAZER. TALVEZ SEJA PORQUE, INCONSCIENTEMENTE, SAIBAMOS QUE SEM A COMIDA NÃO PODEMOS TER ALEGRIA, NEM SAÚDE, NEM MORAL, NEM AMOR, NEM ESPERANÇA, NEM VIDA. NADA. QUANDO SE TEM FOME SÓ SE TEM ELA E MAIS NADA. DE CERTO MODO, É TRISTE RECONHECERMOS QUE DE ESTÔMAGO VAZIO E SEM A ESPERANÇA DE ENCHE-LO, TODOS OS NOSSOS PRINCÍPIOS VIRAM FUMAÇA. ANTES QUE TUDO, VEM O ESTÔMAGO. JÁ HOUVE QUEM ME GARANTISSE QUE ESTE MEU MODO DE PENSAR NASCEU NUM TEMPO EM QUE COSTUMÁVAMOS SER COMUNISTAS, DESPREZANDO COM ISSO OS VALORES ESPIRITUAIS. BESTEIRA. ALGUEM COM A CHAMADA "FOME SEM ESPERANÇA" É CAPAZ DOS PIORES CRIMES POR UM PRATO DE COMIDA.
OS OUTROS FILHOS DA TEKLA, ERAM UM RAPAZINHO CUJO NOME JÁ NÃO ME LEMBRA E QUE SOBREVIVIA FAZENDO BISCATES, A MARICHA, MUITO JOVEM TAMBÉM, QUE POR MUITOS ANOS, MESMO DEPOIS DA SUA MÃE MELHORAR DE VIDA, CONTINUOU VISITANDO A NOSSA CASA. O ZIGMUNDO GRUSKOWSKY (de todo um encanto de criança), UM DIA, JÁ CRESCIDINHO E FORTE, SEM MAIS, FOI LEVADO PELA MÃE, COMO É NATURAL. VISITAVA POREM A FAMÍLIA DE VEZ EM QUANDO. HAVIA AINDA UMA OUTRA FILHA, JÁ MOÇA FEITA, CHAMADA JANINE, MUITO BONITA, QUE TALVEZ TENHA VIVIDO MELHOR, POIS AS MOÇAS BONITAS QUASE SEMPRE TÊM O DESTINO DOS SACIADOS, AINDA QUE ESTA CIRCUNSTANCIA LHES POSSA FERIR A ALMA. O QUE NOS CONSOLA É SABER QUE DE QUALQUER MANEIRA, DE UM MODO OU DE OUTRO, A ALMA SEMPRE SAIRÁ FERIDA DESTE MUNDO.
QUANDO PENSO NAQUELAS PESSOAS, LIGADAS A MIM NUM PASSADO TÃO REMOTO QUE ASSUSTA, PEÇO A DEUS QUE AS PROTEJA E QUE ELAS POSSAM RECEBER TODO O CARINHO QUE MERECEM OS QUE VIVERAM UMA INFÂNCIA DIFÍCIL.
FICO CISMANDO, PENSANDO NAS URDIDURAS DA VIDA: QUE ESTRANHA TESSITURA FAZ COM QUE UMA CRIANÇA NASÇA NA POLONIA E VENHA VIVER NUM PAIS COMO O BRASIL, ENTRE ESTRANHOS, EM TUDO TÃO DIFERENTES DELES? QUE FORÇA MALIGNA SERÁ ESTA QUE ARRANCA AS FLORES DE SEUS CANTEIROS E AS ATIRA NUM LUGAR DESCONHECIDO, QUASE SEMPRE IMPRÓPRIO E HOSTIL?
DURANTE O TEMPO EM QUE O "ZIGMUS" ESTEVE CONOSCO, TÍNHAMOS NOTICIAS MUITO VAGAS DE SUA MÃE E IRMÃOS. ELA APARECIA PARA VISITAR O FILHO E O ACARICIAVA COM OS OLHOS ÚMIDOS, MAS ERA UMA MULHER CALADA E SECA, CHEIA DE RESERVAS. O JEITO EUROPEU QUE TODOS CONHECEM. A MARICHA GOSTAVA ESPECIALMENTE DE UMA DE MINHAS IRMÃS, TALVEZ POR QUE ELA FOSSE MUITO BONITA. MARICHA ERA UMA GAROTA QUIETA, MARCADA PELO SOFRIMENTO. A JANINE GOSTAVA DE PARECER ALEGRE, MAS QUANDO VISTA COM MAIS ATENÇÃO, ERA DE UMA TRISTEZA QUE TALVEZ SOMENTE TCHEKHOV PUDESSE EXPLICAR. NO ENTANTO, ERA DE NATUREZA GENTIL E TOMARA QUE A VIDA, QUASE SEMPRE ODIOSA, LHE TENHA FEITO O FAVOR DE OFERECER FELICIDADE.
E O MENINO? POR ONDE ANDARÁ O "ZIGMUS"? QUE LEMBRAÇAS TERÁ DAQUELE MOMENTO? TOMARA QUE SEJAM BOAS. TOMARA QUE ELE SEJA FELIZ TAMBÉM.
ESTE TIPO DE AFETO ESTÉRIL E IMPOTENTE, QUE APENAS DESEJA BOA SORTE SEM OFERECER NADA DE CONCRETO COMO AJUDA, É UM TIPO DE AMOR DE QUE NINGUEM PRECISA. INFELIZMENTE, SEM SABER ONDE ENCONTRAR ESTAS PESSOAS DEPOIS DE TANTOS ANOS, SÓ POSSO LHES OFERECER UMA ESPECIE DE TORCIDA, O QUE LHES DEVE SER PLENAMENTE DISPENSÁVEL, CASO PRECISEM DE ALGO MAIS VIL E CONCRETO.
CLÁUDIO GONZAGA.
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