terça-feira, 4 de maio de 2010

A HERANÇA.

Colette na visão cruel de seu amigo Jean Cocteau. Eles eram assim: amigos amigos, ironias à parte.

QUANDO O DRAMATURGO ARMANDO GONZAGA MORREU EM 1953, EU TINHA ONZE ANOS. ELE ERA MEU AVÔ, MAS NÃO UM VOVÔZINHO TIPO PAPAI NOEL, DE FACES ROSADAS E PERMANENTE SORRISO. NÃÃÃÃÃO! ABSOLUTAMENTE, NÃO. ELE FAZIA O GÊNERO AVÔ SEMI-DEUS, INACESSÍVEL, INATINGÍVEL, INALCANÇÁVEL, INTANGÍVEL E IMPLACAVELMENTE FORA DO ALCANCE DE CRIANÇAS E ADULTOS NÃO ESCOLHIDOS. ERA UM HOMEM ARREDIO, SERISSIMO, SEM SORRISOS, DISTANTE, INTRANSIGENTE E COM UM SENSO DE HUMOR QUE ERA UMA NAVALHA, CONDIZENTE COM A SUA VERVE DE COMEDIÓGRAFO. TIVE POUCA CONVIVÊNCIA COM ELE E HOJE SINTO PENA QUE TENHA SIDO DESTA FORMA. QUANDO EU ERA CRIANÇA, ELE SÓ ME CAUSAVA MEDO. POREM, HAVIA EM SUA CASA, UMAS COISAS MISTERIOSAS QUE ATRAIAM A MINHA CURIOSIDADE (esta relação com mistérios nunca deixou de existir em mim). ERAM AS SUAS ESTANTES DE LIVROS MUITO SÓBRIAS, ALTAS, EM MADEIRA NEGRA, COM PORTAS DE CORRER ENVIDRAÇADAS E UMA ESCRIVANINHA DE ESTEIRA, SOLENE E BELA EM SUA SOTURNIDADE. ERA NELA QUE ARMANDO GONZAGA ESCREVIA O SEU TEATRO, TRADUZIA MOLIÈRE, ANOTAVA O ORDENAMENTO PRECISO DE SUA CARPINTARIA DRAMÁTICA E ENFIM, EXERCIA O LABOR DE SEU MUNDO DE LITERATO. QUANDO EU PARAVA À PORTA DE SEU ESCRITÓRIO E O VIA DE COSTAS, SENTADO, ESCREVENDO, FICAVA OLHANDO ADMIRADO. MINHA AVÓ, SEMPRE OCUPADA DO BEM ESTAR DELE, COM A MEIGUICE QUE MARCOU A SUA VIDA, ME DIZIA: "O SEU AVÔ ESTÁ ESCREVENDO. NÃO FIQUE AÍ". NUNCA ENTENDIA EM QUE A MINHA PRESENÇA BISSEXTA E CALADA PODERIA ATRAPALHAR, MAS A DOÇURA DAQUELA MULHER QUE FOI A MINHA AVÓ, NÃO ANIMAVA CONTESTADORES. ESTA SIM, ERA A IMAGEM DA AVOZINHA MANSA E TERNA DO IDEÁRIO INFANTIL. DEIXAVA OS NETOS SEGUROS DE SI, APENAS PORQUE ESTAVA PRESENTE. ERA A TERNURA EM PESSOA. HOJE, ENTRETANTO, NÃO VAMOS NOS OCUPAR DA VOVÓ.
ATÉ A MORTE DE ARMANDO GONZAGA, EU LIA APENAS LIVROS INFANTIS, EMBORA ISSO NÃO FOSSE POUCO, POIS ELES ERAM ESCRITOS POR MONTEIRO LOBATO, AMIGO DE MEU AVÔ E O GRANDE AMOR DE TODA CRIANÇA DAQUELE TEMPO.
PRIMEIRO OUVI COMENTÁRIOS VAGOS SOBRE A DOENÇA DO MEU AVÔ, MAS NÃO DEI MUITA ATENÇÃO (as crianças não participavam, à época, de quase nada na vida adulta). DEPOIS SOUBE QUE ELE HAVIA MORRIDO, MAS NÃO SENTI NADA COM A NOTICIA. NÃO SOFRI A PERDA. FOI ASSIM: "MORREU O VOVÔ" - DISSE MEU PAI E FOI SÓ. ELE POREM, PERCEBI, ESTAVA DESOLADO, POIS O AMOR QUE O UNIA AO "VELHO PAI" ( chamava-o assim), ERA TÃO GRANDE QUE PARECIA NÃO EXISTIR NADA ALÉM DAQUELE HOMEM MISTERIOSO, QUE DECERTO CONHECIA TODOS OS SEGREDOS DA VIDA. ERA ASSIM MESMO QUE PARECIA A MEUS OLHOS.
FUI À SUA MISSA DE SÉTIMO DIA, CELEBRADA NA IGREJA DE SÃO JOSÉ, DE QUE ME LEMBRO DA PRESENÇA DA ATRIZ HELOISA HELENA COM AS UNHAS PINTADAS DE VERDE. DIAS DEPOIS DESTE ACONTECIMENTO SUPOSTAMENTE RELIGIOSO, QUE FOI UMA FESTA PARA MIM, DEU-SE UMA COISA MARAVILHOSA: A MINHA AVÓ DECIDIU MANDAR PARA A CASA DE MEU PAI, ONDE EU VIVIA, AS ESTANTES E A ESCRIVANINHA DO ESCRITOR MORTO. CÉUS! QUANDO VI AQUILO TUDO ENTRANDO EM MINHA CASA, FIQUEI GELADO DE EMOÇÃO. PARA UM MENINO DESENXABIDO E SÓ COMO EU, AQUILO ERA O MELHOR QUE PODERIA TER ACONTECIDO. AQUELAS COISAS QUE PERTENCIAM A UM MUNDO ASSOMBRADO, IAM AGORA, PREVI, SER TOCADAS POR MIM.
DEPOIS DE TUDO ARRUMADO EM SEUS LUGARES, FUI ME SENTAR À CADEIRA GIRATÓRIA DA ESCRIVANINHA E MEXER NAS COISAS INTACTAS DO HOMEM INATINGÍVEL, JÁ MORTO. NAQUELE INSTANTE COMPREENDI A TRANSITORIEDADE DA VIDA. ENTENDI TAMBÉM QUE AS COISAS, DURAM MAIS DO QUE AS PESSOAS.
NESTE MOMENTO DE MINHA VIDA DE CRIANÇA, O MEU PAI, BEM JOVEM AINDA, TRABALHAVA MUITO E NÃO PARAVA EM CASA; MINHA MÃE SE OCUPAVA DOS MEUS IRMÃOS, ENQUANTO EU, O ESQUECIDO, O DESTERRADO, INVADIA SÔFREGO TUDO AQUILO QUE ACABARA DE CHEGAR À MINHA EXISTÊNCIA, ATÉ ALI CINZENTA. NUNCA APRECIEI TANTO A CONVENIENCIA E A LIBERDADE DE SER O REJEITADO DA CASA, POIS DESTA FORMA, FICAVA COM MAIS TEMPO DISPONÍVEL PARA EXPLORAR O LEGADO INVOLUNTÁRIO DO ESCRITOR DEFUNTO.
NÃO DEMOROU MUITO PARA QUE EU RECONHECESSE, AOS ONZE ANOS, QUE A MORTE DO MEU AVO, SÓ ME TROUXE FELICIDADE. AQUELE MENINO PERDIDO NUMA VIDA SEM LUZ, SAIU DA SOMBRA E ENTROU, NUM SALTO, NA LUZ DE MOLIÈRE, COURTELEINE, CAPUS, SHAKESPEARE, CORNEILLE, RACINE E CENTENAS DE OUTROS AUTORES TALVEZ MENORES, MAS SEMPRE AMADOS POR MIM COM A MAIS DESENFREADA PAIXÃO. HAVIA NAQUELE ESPOLIO GLORIOSO, TAMBÉM AS PEÇAS DOS CONTEMPORÂNEOS BRASILEIROS DO MORTO: OS MEMBROS DO QUE JÁ SE CHAMAVA: "GERAÇÃO TRIANON". ERAM COMÉDIAS LIGEIRAS DO INICIO DO SÉCULO, MONTADAS NO THEATRO TRIANON, SEMPRE FAZENDO CRITICA DE COSTUMES, DE SITUAÇÕES, DE POUCA AMBIÇÃO ARTÍSTICA E MUITA GRAÇA EPISÓDICA. PODERIA ENCHER AINDA HOJE PÁGINAS INTEIRAS COM OS TÍTULOS DAS PEÇAS BRASILEIRAS QUE PASSARAM PELAS MINHAS MÃOS E QUE FIZERAM O RECREIO DO GAROTO FELIZ EM QUE ME TORNARA DE UMA HORA PARA OUTRA.
ENTRE TODAS AS COISAS QUE "PESQUEI" NAQUELAS ESTANTES, AS OBRAS COMPLETAS DE COLETTE E A FARTA DOCUMENTAÇÃO SOBRA A VIDA MUNDANA DE SIDONIE GABRIELE COLETTE, ME IMPRESSIONARAM DE MODO PARTICULAR. NÃO POSSO DESCREVER AS DELICIAS QUE SENTI AO TOMAR CONHECIMENTO DAS TRANSGREÇÕES COMETIDAS NA VIDA E NA OBRA, PELA VELHA DAMA FRANCESA. HOJE SEI QUE A QUALIDADE LITERÁRIA DE COLETTE É DISCUTÍVEL, MAS FOI DE FORTE IMPACTO PARA UM MENINO SEM RUMO, EM 1953.
NO ANO SEGUINTE COLETTE VIRIA A MORRER EM PARIS. A MORTE DA ESCRITORA, ME DEIXOU TAMBÉM MUITO FELIZ PORQUE, ANTES QUE TODOS, EU JÁ SABIA MUITO SOBRE COLETTE E FALAVA ABERTAMENTE DE DETALHES DE SUA VIDA ESCANDALOSA. PODE-SE IMAGINAR O QUANTO UM GAROTO EXIBIDO E PRESUNÇOSO COMO EU, INDIGNOU AS GENTES DE SEU TEMPO, FALANDO COM INTIMIDADE E ADMIRAÇÃO DE UMA ESCRITORA DE RENOME INTERNACIONAL, TIDA PELA MAIORIA COMO PROSTITUTA.
SÃO ESTAS COISA QUE ME FAZEM SEMPRE REPETIR QUE AS MINHAS ALEGRIAS MAIORES VIERAM, NA INFÂNCIA, POR INTERMÉDIO DA MORTE. PRIMEIRO A DO MEU AVO; DEPOIS A DA COLETTE, AUTORA DE "CLAUDINE À L'ÉCOLE", "CHÉRI" E MUITOS OUTROS TEXTOS, INCLUSIVE O MEU PREFERIDO "LA VAGABONDE". AS PESSOAS DITAS DE "FAMÍLIA", SE BENZIAM QUANDO EU FORÇANDO UMA PRONUNCIA SOFISTICADA DE FRANCÊS, SABOREAVA OS SEUS TÍTULOS. NUNCA FUI TÃO ODIADO. FICAVA NO CÉU COM ISSO.
FOI A COLETTE QUE ME ENSINOU A AMAR TODOS AQUELES QUE, PARA FUGIR AO MASSACRE DO COTIDIANO, FICAM MEIO MORTOS PELOS CAMINHOS DA VIDA, ENTREGUES AO DELÍRIO, AO ÓPIO, AO ABSINTO, AO CHAMPAGNE, E A TODOS OS INEBRIANTES DO MUNDO. GENTE QUE, EM BUSCA DE ALEGRIA, ACABOU INDO AO ENCONTRO DO OPRÓBRIO. DE MODO GERAL, ESTES, NÃO MERECEM O CARINHO DAS PESSOAS "SÉRIAS".
NOS DIAS DE HOJE, EM QUE A IMAGINAÇÃO É POUCA, AS PESSOAS SE OCUPAM DE TOLICES COMO HOMOFOBIA, POR EXEMPLO. ENTRETANTO, COLETTE, COCTEAU, GENET E TODA A INTELECTUALIDADE PARISIENSE DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO VINTE, SABIA QUE O DESEJO SEXUAL É, EM QUALQUER CASO, UM ESTADO DE INSANIDADE E ASSIM SERÁ PARA SEMPRE. UM SER HUMANO COM DESEJO, SEJA QUAL FOR A PARCERIA QUE DESEJA, É APENAS UM ANIMAL NO CIO E É BOM QUE SEJA ASSIM. NO MOMENTO EM QUE NOS PENSARMOS ANIMAIS, SEREMOS MAIS SENSÍVEIS, MAIS POÉTICOS, MAIS INTELIGENTES, MAIS LIVRES E DECERTO MAIS FELIZES, ALÉM DE DARMOS MELHORES TREPADAS, COM MAIS NATURALIDADE E SEM CULPA.
UMA DAS GRAÇAS DE COLETTE, ERA DIZER QUE O DESEJO DE VIAJAR REVELAVA FALTA DE IMAGINAÇÃO. PUDERA! ELA VIVIA EM PARIS, CÉREBRO E CORAÇÃO DA CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL EM SEU TEMPO. PORQUE DEVERIA PENSAR EM VIAGENS? EU FARIA HOJE QUALQUER COISA PARA NUMA VIAGEM NO TEMPO, VOLTAR E TOMAR UNS PORRES COM A COLETTE, O COCTEAU, PIAF, GIDE, MARRAIS E TODOS ELES, NUM CAFÉ EM PARIS. OS LUGARES AINDA EXISTEM E ESTÃO LÁ, PORQUE SÃO COISAS E COISAS SÃO DURÁVEIS; ELES POREM, NA CONDIÇÃO DE HUMANOS JÁ SE FORAM. NÃO EXISTEM MAIS. SER EFÊMERO É, EM MUITOS CASOS, UMA REALIDADE MUITO TRISTE.
DE QUALQUER MODO SOU IMENSAMENTE GRATO À VIDA, POR ME TER FEITO HERDEIRO INVOLUNTÁRIO DOS LIVROS DE MEU AVÔ.


CLÁUDIO GONZAGA.


Um comentário: