ERA PLENO OUTONO, AMANHECER DE DOMINGO DE SOL FRACO. POR ISSO MESMO, COMO AINDA NÃO ESQUENTARA, NÃO HAVIA NENHUM VAPOR EMBAÇANTE E AS TRANSPARÊNCIAS NATURAIS DAS MEIAS ESTAÇÕES, ESTAVAM SOLTAS PELAS RUAS E DANÇAVA NO AR UMA PONTA DE FRIO DA NOITE ACABADA, QUE ARREPIAVA AS FOLHAS DA ÁRVORES, BEM MAIS VERDES DO QUE DE COSTUME. NUM DIA DE VERÃO, NADA DISSO SERIA POSSÍVEL. AS MEIAS ESTAÇÕES SEMPRE ME DERAM MUITA SEGURANÇA E PAZ. ACORDO MAIS CEDO SÓ PARA SENTIR AS PRIMEIRAS HORAS DO DIA PERTO DO MAR. FAÇO ISSO DESDE CRIANÇA. BEM, COMO JÁ DEU PARA NOTAR, EU QUERO DIZER QUE AQUELE ERA UM AMANHECER DELICIOSO.
EU IA ANDANDO MUITO TRANQUILO PELA VIEIRA SOUTO, EM DIREÇÃO AO ARPOADOR, QUANDO OUVI UM PSIU POR TRÁS DE MIM. ME VOLTEI E ERA UM AMIGO MEU, QUE SE DIRIGIA A MIM A PASSOS RÁPIDOS. EU QUASE CAÍ DE SUSTO, SABE PORQUE? ESTE AMIGO, QUE SERÁ CHAMADO AQUI APENAS DE LÚCIO JÁ QUE O SEU NOME COMPLETO É MUITO CONHECIDO, ESTAVA MORTO HÁ MAIS OU MENOS TRINTA ANOS. IMAGINE QUE O LÚCIO ME FEZ PSIU E VINHA EM MINHA DIREÇÃO, DEPOIS DE ANOS E ANOS DE MORTO. EU TINHA IDO AO FUNERAL E VELARA O SEU CORPO. OLHEI PARA OS LADOS PROCURANDO VER ALGUÉM (eu estava morrendo de medo). ÀQUELA HORA, EM FRENTE À JOAQUIM NABUCO, NÃO TINHA NINGUÉM. ELE CHEGOU AO MEU LADO E DISSE:
- OI, CLÁUDIO. MADRUGOU HOJE? DEVE TER DORMIDO CEDO ONTEM...
- NÃO... EU... É... MAS...
- QUE É QUE VOCÊ TEM? ESTÁ BRANCO COMO UM LENÇOL... PARECE QUE VIU UM FANTASMA.
QUANDO ELE DISSE ISSO EU NÃO TIVE QUALQUER DÚVIDA DE QUE AQUELE ERA O LÚCIO MESMO, PORQUE SEMPRE QUE ELE FALAVA OU ESCREVIA SOBRE ALGUMA COISA MUITO BRANCA, A COMPARAVA A UM LENÇOL. ATÉ, QUANDO COMEÇARAM A APARECER OS LENÇÓIS COLORIDOS, EU PENSEI: "LÁ SE FOI, COM ESTES LENÇÓIS FLORIDOS, A COMPARAÇÃO PREFERIDA DO LÚCIO".
- CLÁUDIO ME DIGA POR ONDE VOCÊ TEM ANDADO, QUE NÃO TE VEJO MAIS?!
- EU...? AH, EU... QUE COISA...!
- VAMOS SENTAR ALI. VOCÊ TEM VISTO O JOÃO BATISTA?
EU DISSE QUE NÃO E ME CALEI SEM SABER O QUE PENSAR, MAS JÁ UM POUCO MAIS TRANQUILO. AFINAL EU ESTAVA DIANTE DE UM FATO: O LÚCIO ESTAVA Á MINHA FRENTE E APESAR DE SABÊ-LO MORTO, NÃO PODIA ME COMPORTAR DE MODO DESCORTÊS. O LÚCIO POR MUITOS ANOS FORA UM GRANDE AMIGO E NA VERDADE, APESAR DO DESCONFORTO DA SITUAÇÃO, EU ESTAVA FELIZ POR TÊ-LO ENCONTRADO. UMA FELICIDADE AFLITA, MAS SEMPRE FELICIDADE.
ELE ME OLHAVA E PARECIA ESTAR REALMENTE ESTRANHANDO AS MINHAS REAÇÕES.
- VOCÊ BEBEU ALGUMA COISA, CLÁUDIO? É AINDA TÃO CEDO...
- NÃO... É QUE VOCÊ ESTÁ... NÃO É POSSÍVEL...
DE REPENTE O LÚCIO ESPIRROU E FEZ O SEGUINTE COMENTÁRIO:
- AS MANHÃS DE OUTONO SEMPRE FORAM ESTERNUTATÓRIAS COMIGO.
AGORA MESMO É QUE EU NÃO PODIA DUVIDAR DE QUE AQUELE, ERA DE FATO O LÚCIO. AQUELA PALAVRA ERA A CARA DELE. SEMPRE A USAVA EM RELAÇÃO ÀQUELE TIPO DE MANHÃ FRESCA NO OUTONO. NINGUÉM MAIS NO MUNDO, A NÃO SER O SOFISTICADO LÚCIO, DIRIA DE UMA MANHÃ QUE ELA ERA ESTERNUTATÓRIA, SÓ PORQUE LHE PROVOCARA UM ESPIRRO. EU PARA ME VINGAR DA PALAVRA, NUMA ANTIGA E CONHECIDA COMPETIÇÃO ENTRE NÓS. COMENTEI À ALTURA:
- É VERDADE, AS MANHÃS DE OUTONO TÊM SEMPRE UM CARATER ERRINO (fazem espirrar) - E CONTINUEI:
- LÚCIO, MEU AMIGO... PODE PARECER GROSSEIRO, MAS EU TENHO CERTEZA DE QUE VOCÊ ESTÁ MORTO... EU FUI AO SEU ENTERRO... NÃO SEI O QUE FAZER...
- AH, ISSO? POIS É, VOCÊ ESTÁ CERTO, EU ESTOU MORTO, MAS CONTINUO GOSTANDO DE PASSEAR QUANDO AS MANHÃS SÃO ASSIM LEVES E FRESCAS. O TEMPO, LÁ ONDE EU VIVO, É SEMPRE ASSIM, MAS TEM UM PROBLEMA: NÃO HÁ MAR, NUNCA DÁ PRAIA E VOCÊ SABE QUE NÃO GOSTO DE PERDER PRAIA QUANDO FAZ SOL, NÃO É? MAS JÁ FAZIA MUITO TEMPO QUE EU NÃO VINHA AQUI NO ARPOADOR. ESTE HOTEL NÃO EXISTIA NA ÚLTIMA VEZ...
- ENTÃO TEM MUITO TEMPO MESMO - RESOLVI CONVERSAR ABERTAMENTE.
- ALIÁS MUITA COISA ESTÁ MUDADA. QUANDO FOI QUE TIRARAM O PIER DO POSTO NOVE?
- AH, JÁ TEM TEMPO...
- E A MACONHA VELHA DE GUERRA? AINDA SE FUMA?
- NÃO É MAIS DA BOA... TUDO PIOROU MUITO POR AQUI.
- O CASTELINHO TAMBÉM JÁ ERA, POIS NÃO?
- IH... ISSO JÁ DESAPARECEU HÁ ANOS...
- E O JANGADEIROS NA VISCONDE DE PIRAJÁ EM FRENTE Á GENERAL OSÓRIO? EU PASSEI POR LÁ E ELE NÃO EXISTE MAIS... O PRÉDIO QUE EU MORAVA NA BARÃO DA TORRE TAMBÉM DERRUBARAM, NÃO?
- NÃO É BOM FALAR DAS COISAS QUE ACABARAM AQUI EM IPANEMA. DAQUELE TEMPO NÃO SOBROU NADA.
- AINDA BEM QUE O MAR CONTINUA O MESMO...
- QUE NADA! ESTÁ SUJO PRA BURRO.
- VOCÊ TAMBÉM CLÁUDIO, ESTÁ MUITO DIFERENTE. ENGORDOU COMO UM BOI E ESTÁ MUITO MAIS VELHO. EU ESTOU A MESMA COISA...
- BEM... MAS VOCÊ ESTÁ MORTO, CERTO? OS MORTOS NÃO ENVELHECEM...
- VOCÊ NÃO PRECISA ESTAR O TEMPO TODO ME DIZENDO QUE EU ESTOU MORTO... NÃO É GENTIL... EU ME SINTO TÃO...
- DESCULPE LÚCIO. EU NÃO QUIS OFENDER. É BOM ESTAR MORTO?
- NÃO SEI DIZER AO CERTO. É DIFERENTE... SERÁ QUE O ZEPELIM JÁ ABRIU?
- NÃO EXISTE MAIS. O VELOSO TAMBÉM NÃO, MAS SE VOCÊ QUISER BEBER ALGUMA COISA PODEMOS IR ATÉ A MINHA CASA.
- NÃO, EU PREFIRO FICAR NA RUA, MESMO COM TODAS AS MUDANÇAS QUE HOUVE. O "MAU CHEIRO" ACABOU?
- OLHA: VOCÊ O ESTÁ VENDO? POIS É, ACABOU TAMBÉM.
- E AQUELE MENINO QUE O CAETANO VELOSO...
- MORREU.
- AH, QUE PENA... MAS NÃO APARECEU POR LÁ ONDE MORO. DEVE TER IDO PARA OUTRO SETOR...
- QUE HISTÓRIA DE SETOR É ESSA?
- VAMOS DEIXAR ISSO PRA LÁ. É VERDADE QUE O SERGIO CABRAL É O GOVERNADOR AGORA?
- O GOVERNADOR É O SÉRGIO CABRAL FILHO...
- AH, SEI... E O ALBINO?
- MORREU.
- E A VERA SANT'ANA DA GARCIA D'AVILA?
- MORREU.
- O LEON HIRSHMAN...
- MORREU.
- PÁRA CLÁUDIO, VOCÊ ESTÁ QUERENDO ME ASSUSTAR...
- VOCÊ TAMBÉM MORREU, LÚCIO... NÃO SOBROU NINGUÉM, NÃO... SÓ O JOÃO LUÍS ALBUQUERQUE E EU É QUE... MAS NÃO SEI NÃO...
- O RUBEM BRAGA, O CARLINHOS DE OLIVEIRA, O LÚCIO RANGEL, O PAULINHO MENDES CAMPOS, VOCÊ NÃO VAI ME DIZER QUE...
- MORTOS. ESTÃO MORTOS.
- O VINICIUS E O TOM...
- MORTOS.
- MAS ELES NÃO APARECEM DE VEZ EM QUANDO?
- NUNCA. EU NUNCA VI NADA. VOCÊ É O PRIMEIRO.
- BEM QUE EU VIM ANDANDO DESDE A PAUL HEDFERN E NÃO VI NINGUÉM CONHECIDO... NEM O TARSO QUE COMEÇAVA CEDO...
- MORTO TAMBÉM.
- QUE COISA... E A LEILA?
- MORTA.
- SABE DE UMA COISA CLÁUDIO, EU VOU ANDAR UM POUCO SOZINHO. O SEU PAPO HOJE ESTÁ MUITO MÓRBIDO. TCHAU - ATRAVESSOU A RUA E ENTROU NA RAINHA ELISABETH.
FIQUEI PENSANDO EM COMO REENCONTROS SÃO DIFÍCEIS. EU DEVERIA TERMINAR ESTA CRONICA DIZENDO UMA FRASE SAPIENCIAL SOBRE A MORTE, AO ESTILO CONFÚCIO; DEVERIA OFERECER AOS LEITORES ALGUM PENSAMENTO IMPORTANTE SOBRE A VIDA; DEVERIA AINDA, SER MISERICORDIOSO E DIZER QUE FUI À MISSA NA IGREJA DA RESSURREIÇÃO ALI BEM PERTO, REZAR PELA ALMA DO LÚCIO, MAS ELE ME PARECERA TÃO BEM DE ESPÍRITO, QUE PREFERI FICAR OLHANDO O MAR, SEM PENSAR EM NADA, RECEBENDO NO ROSTO AQUELE VENTO MARAVILHOSO QUE NOS VEM DA ÁFRICA E QUE EXPLICA TUDO EM SEGREDO, ATÉ A MORTE. DEPOIS FUI TOMAR O CAFÉ DA MANHÃ NO "ARPOADOR INN" QUE RECOMENDO, MAS SABE QUE AQUELE ENCONTRO COM O LÚCIO ME PERTURBOU O DIA? DOMINGO É FOGO, NÃO? MAS NÃO RECLAMO, POIS ALÉM DE NÃO ESTAR CALOR, SE PODE IR FICAR MEIO GROG NO IMPERATOR E ENCONTRAR O LÉO, QUE PELO MENOS ESTÁ VIVO E É ENGRAÇADO.
CLÁUDIO GONZAGA.
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