quarta-feira, 12 de maio de 2010

MULHERES!!!


Andava com passos seguros, regulares, objetivos mas deslizantes e flutuantes. Não era muito bonita mas não era muito feia também. Era, sem a menor dúvida, uma mulher de classe e para mulheres assim, não fica bem a beleza em excesso nem a ausência completa da mesma. Uma verdadeira mulher de classe, só chama atenção por um donaire que ela finge não ter. Vestia com discrição um tailleur de algodão cor de canela desmaiada, debruado de bege, sem botões. Por dentro, uma blusa verde escuro, sem nenhum enfeite além de uns colares de pérolas longos, como os usava a Chanel. O cabelo era de corte tão simples, que fica difícil descrever. Possivelmente, para chegar àquela simplicidade, devia ter passado horas e horas no cabeleireiro.

As mulheres muito elegantes são discretas em tudo, até e principalmente na maquillage. Acho que, ou não usava perfume ou este só era percebido quando ela estava em sua mais absoluta intimidade. Não havia em sua figura nenhum contraste forte ou fraco. Era como um cartoon de pastel esfumaçado, em que foram usadas cores neutras e esbatidas. O único ponto que sobressaia no seu todo, eram os olhos lindos, muito grandes, oblíquos, negros, pestanudos, úmidos, brilhantes e langorosos, quase a um ponto pecaminoso. Aquela mulher, com aqueles olhos, não poderia mesmo deixar de ser discreta no vestir, pois os seus olhos de deusa olímpica, assim o exigiam. Nada poderia ser mais importante do que eles e ela sabia disso com uma certeza inabalável. Era tão avara de seus olhares, que entrou no aeroporto, dirigiu-se ao balcão, fez lá o que foi preciso e saiu, sem desviar uma só vez os olhos para lado algum. Parecia estar sozinha no lugar.

Já liberta de sua mala pequena em couro marrom, rematada com fechos de ouro, ficou apenas com a sua bolsa elegantíssima, de grife inacessível e oculta. Dirigiu-se ao restaurante, pediu um café, tirou da bolsa um pequeno livro encadernado em couro e pôs-se cândidamente a ler. Eram poemas de Blake. Ficou ali até que, em uma hora, o seu voo foi anunciado. Ela chamou o garçom com um gesto largo e inesquecivel de mão, pagou, levantou-se e seguiu para o seu avião a passos regulares, objetivos, cadenciados, deslizantes e flutuantes.
Quis o destino que o voo dela fosse o mesmo que o meu. A sua poltrona ficava próxima à minha e logo que o avião deixou a pista, ela se dirigiu à toilette, à porta da qual começara a se formar uma pequena fila. Eu, por falta absoluta do que fazer, fiquei a espera de sua volta.
Entretanto, uma coisa chata aconteceu e desviou a minha atenção. Uma mulher loura, vulgar, de mini saia vermelha de seda brilhante, blusa decotadíssima, negra, coberta por um xale de franjas douradas longas e usando sapatos tipo Carmen Miranda, de duas cores, veio sentar-se justamente no lugar da deusa dos olhos de Vénus. Fiquei tão apurrinhado com aquilo que tive vontade de mandá-la se levantar imediatamente. Se tivesse ainda vinte anos era o que teria feito. Aos sessenta, porem, a banda toca de outra forma a mesma canção. Me contive, mas estava disposto a tomar a defesa da deusa infinita, se fosse necessário, quando voltasse aquela Titânia de todos os sonhos.

Nisso, um casal duas poltronas adiante começou a discutir violentamente e eu, com a curiosidade comum a todos de saber detalhes da vida alheia, me interessei pela questão que motivou a desavença. Era briga de gente mal educada e isso costuma ser divertido, principalmente num voo aborrecido de mais de nove horas seguidas. Muita gente pedia silencio, mas nada mudava a disposição beligerante dos dois e os ataques verbais, típicos das pessoas que estão apaixonadas, pareciam inesgotáveis. De repente, a loura vulgar se levantou e gritou com uma voz estridente, arranhada, suja:

- Ô putada! "Vamo" acabar com essa zona aí, que tem gente querendo dormir, seus filha da puta. Isso aqui não é zona não, seus otario! "Qué brigá", cai pra cá, que eu meto o pau nos dois; desço o cacete; baixo a porrada, mané. "Quis" neguinhos filha das puta, porra!

Quando olhei melhor para aquela mulher de rosto excessivamente maquillado, quase desmaiei. No meio daquela maquillage toda, aparecia um par de olhos estonteantes, negros, lindos, oblíquos, úmidos, brilhantes, que eu conhecia muito bem. Era a deusa de olhos de Venus, que dentro do banheiro se transformara na mais ordinária figura de mafuá de subúrbio. Os olhos, no entanto, mantinham os mesmos encantos pestanudos.

Em Lisboa, durante o desembarque, puxei conversa com ela e tive a explicação por que ansiava: aquela mulher era no Brasil uma senhora casada com um sujeito muito rico, herdeiro de várias fortunas de família. Era tão chic, que só saia de casa, para ir ao seu fechadíssimo "gentlemen club" em Londres, toda semana. A sua mulher para não desgostá-lo, quando queria um tempero a mais em sua vida insípida, ia ser puta e fadista amadora em Portugal. Quando voltava de lá, reassumia o seu papel de lady e se mostrava sempre mais elegante e chic do que quando fora.
Não posso esquecê-la me dizendo, já com o acento luso incorporado a sua fala:

- Não fiques assim espantado, ó pá. Eu sou apenas duas pessoas. Tem gente por aí que é mais de dez... Quando estou pra cá, me apresento como fadista em uma casa de fado no Bairro Alto. Aqui está o endereço. Apareça por lá. Sou conhecida como Madalena Pão-e-queijo. Isso quer dizer: fácil de encontrar e fácil de comer.
Com essa, despedi-me, tomei um táxi e fiquei pensando naquilo enquanto o carro deslizava macio pela cidade limpa e bela. A solução encontrada por aquela mulher para se desviar do tédio, não deixava de ser interessante e parecia ser também eficaz. Não pude evitar que os meus pensamentos se desenvolvessem até o ponto de me perguntar o que faria ela, se fosse uma pessoa comum, casada com um operário brasileiro, cheia de filhos, sem dinheiro para nada. Não elaborei resposta alguma, provavelmente porque fosse um questionamento duro de encarar.

Na Praça dos Restauradores, onde fica o meu hotel, o Rivoli, saltei com a minha mala e à noite fui vê-la cantar o fado no Bairro Alto, numa deliciosamente chinfrim tasca onde se reúne grande parte do "bas-fond" português, que é a coisa mais rastaquera que pode existir no mundo. Mas sabe que ela cantou bem à beça? Já amanhecera e ela e eu, ainda estávamos a tomar umas ginginhas, numa pequenina tendinha em frente ao Teatro Dona Maria II, que é a mais antiga taberna de Lisboa.

Ficamos amigos, saímos algumas vezes para jantar e era sempre muito confuso encontrar um restaurante fino, bem conceituado, que a aceitasse de pronto. A sua figura, vulgar ao extremo, assustava "Restaurenteurs", "Maitres"e até os garcons, defensores da honorabilidade de dos seus estabelecimentos.

Voltamos juntos para o Brasil. Logo que o avião saiu de Lisboa, ela foi ao toilette e retornou de lá, usando um tailleur Chanel em musgo e como íamos desembarcar pela manhã, ela trazia nas mãos um delicioso chapéu de aba larga em palhinha francesa, com uma fita muito delicada, cheia de florezinhas miúdas e descoradas. Quando veio do toilette, ouvi a sua voz educada, morna, distante, calma, leve e algo terna, dizer para mim, antes de sentar-se ao meu lado: "Com licença"? Nunca ouvira um "com licença" tão fino. Durante toda a viagem isso foi tudo o que ela disse. No desembarque, os funcionários disputaram entre si a vez de servi-la. O que venceu a corrida, ao lhe ser oferecida a gorjeta, recusou recebê-la, ligeiramente corado e tremulo de emoção.

Já no meu Táxi, sozinho, rodando pelo bonito Parque do Flamengo, que o povo insiste em chamar de Aterro, ia pensando no jovem que ficou corado só de carregar a bagagem daquela mulher formidável. Que diria ele se soubesse que a sua rainha, a sua deusa era, em Portugal, uma puta de dois euros e meio? Era a pão-e-queijo, fácil de encontrar e de comer.


CLÁUDIO GONZAGA.

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